Anti-Édipo: ouvidos novos para uma nova música


Como pode um livro de desbragada positividade chamar-se “O Anti-Édipo”? A negação presente no título não estaria comprometendo a pura afirmação de suas “paixões insanas” e “intensidades mutantes”? O Anti-Édipo presta hommage ao “Anticristo”, de Nietzsche. Deleuze e Guattari sintetizam Marx com Nietzsche para levar a superação do niilismo passivo a um ponto extremo. No “Anticristo”, a crítica da culpa judaico-cristã que se infiltrou nos ideais e instituições da modernidade, na verdade, na ciência, na política. No de 1972, a crítica da edipianização generalizada com que o capitalismo domina por dentro do desejo, das artimanhas da felicidade, das armadilhas do sucesso, na coincidência entre fluxo do desejo/moeda e repetição infinita da dívida. A sociedade não se baseia nas necessidades, mas nos excessos, eles é que definem os corpos plenos do social: selvagem, bárbaro ou civilizado. “The road of excess leads to the palace of wisdom…You never know what is enough until you know what is more than enough.” (Blake)

Portanto, o desejo, o consumo, o dispêndio e o desperdício, tudo isso está na base. As máquinas sociais têm que dosar a produtividade enlouquecida por meio de elementos de antiprodução, sob o risco do excesso construir o seu reino. Este é um tema central do “Anti-Édipo” que vem de Marx, do capitalismo como aprendiz de feiticeiro que desencadeia forças que precariamente tenta controlar. Daí tantas alianças propostas com esse jorro de liquidez-desejo: dos novos gestores comportados da esquerda keynesiana aos monetaristas da financeirização irrestrita, da vontade prometeica de tomar posse do processo e tudo controlar ao antiprometeísmo burkeano para quem diante do Anticristo é preciso comer pelas bordas com reformas graduais e seguras. Entre a euforia de habitar as velocidades infinitas ao gosto niilista de um Nick Land e a linguagem cada vez mais autorreferencial dos antropocenólogos que se comprazem em celebrar a própria melancolia, dois núcleos escapistas perfeitamente adequados à atmosfera pós-punk (entre erudição alternativa, cigarros e masturbação).

Para Deleuze-Guattari do Anti-Édipo, somente uma esquizoanálise será capaz de afirmar duas vezes a insanidade globalizada do capitalismo all-out. É Artaud + cyberpunk, Lacan com Burroughs, num tempo de guerra difusa sob o controle da Nova Police, onde o esquizo é feito POW. Fomos soterrados pelo ruído da pós-modernidade? Nos esfumamos em seu crepúsculo branco, nos clarões onipresentes da comunicação total? Ainda temos ouvidos para ouvir o “Anti-Édipo”?